Por Raphaela Lopes (Justiça Global) e Arnold Kwesiga (Initiative for Social and Economic Rights, Uganda), membros da REDE DESC
Em Uganda, mulheres agricultoras foram envenenadas por uma empresa holandesa de exportação de flores. No Brasil, comunidades inteiras foram varridas do mapa e pessoas foram mortas e deslocadas por uma joint-venture entre uma empresa brasileira (Vale) e outra anglo-australiana (BHP Billiton) de mineração. Ambas as populações enfrentam o maior desafio, também enfrentado por muitas outras comunidades ao redor do mundo: acesso à justiça e reparação em casos de violações de direitos humanos cometidas por empresas transnacionais.
Qualquer tentativa de enfrentar esse tema complexo precisa levar em consideração dois aspectos distintos: 1) populações atingidas sofrem com a falta de vias de acesso à justiça, incluindo parâmetros baixos ou ausentes de direitos humanos; 2) às corporações é garantido o acesso indevido e influência sobre os Estados e seus órgãos, uma realidade conhecida como “captura corporativa”. Para tratar de ambas as questões, o tratado também deve considerar os desequilíbrios de poder entre o Norte e o Sul Global, além das diferentes necessidades que os povos têm a partir de onde eles falam.
Acesso à justiça e a remédios efetivos para abusos corporativos continuam sendo um grande desafio, principalmente na realidade de países em desenvolvimento. Em primeiro lugar, a debilidade (ou falta de vontade política) dos Estados de promover direitos humanos em geral e a realização de direitos econômicos e sociais. Isto levou as empresas a preencher estas lacunas através de princípios voluntários de responsabilidade social corporativa (RSC) – usando-as como licença social para operar até mesmo quando de suas atividades derivam-se abusos corporativos.
Em segundo lugar, há o tema da “captura corporativa”, pois o Estado costuma ser cúmplice em violações de direitos humanos cometidas por corporações. Por exemplo, agências de segurança do governo freqüentemente levam a cabo despejos em massa para abrir caminho e atrair investimentos empresariais, o que suscita a pergunta: “quando o Estado e suas agências estão envolvidos em abusos corporativos de direitos humanos, onde as vítimas podem recorrer a remédios?”.
Portanto, o estabelecimento da jurisdição extraterritorial – que é especialmente pensada para aplicação nos estados de origem das empresas – é de importância primordial para tratar das dificuldades no acesso à justiça. De fato, o projeto de tratado contempla essa problemática no artigo 5, apesar da falta de precisão, especialmente quando descreve o que deveria ser considerado “domicílio” (5.2). Além disso, o projeto de tratado não contém uma regra clara para impedir que os Estados restrinjam o acesso a seus sistemas legais internos, por parte de comunidades atingidas no exterior, que sofreram com atos de empresas domiciliadas nesses Estados.
Ademais, se os artigos 9.3 e 4 delineiam obrigações claras aos Estados Parte, estas também precisam ser estendidas para incluir obrigações extra-territoriais, de modo a garantir que a busca por remédios eficazes esteja em níveis concorrentes, valendo tanto para violações no estrangeiro, quanto no próprio território do Estado. Deve haver um arcabouço jurídico expansivo de obrigações extraterritoriais, de modo que os Estados de origem sejam obrigados a garantir que suas pessoas (inclusive empresas transnacionais) respeitem os direitos humanos em todas as suas operações no exterior e que, quando violem os direitos, sejam responsabilizados.
Os artigos 11 e 12, sobre cooperação internacional, também são exemplos que dizem respeito à interação entre territórios e podem ser cruciais para garantir o acesso a reparações. O conceito de compartilhamento de informações e melhores práticas é um passo na direção certa. No entanto, as disposições atualmente parecem ainda um rascunho e insuficientemente mandatórias. O que aconteceria se um Estado não cooperasse de boa vontade? O que na verdade equivale a uma cooperação de boa vontade? Como as disputas envolvendo corporações transnacionais geralmente assumem um caráter político, isso precisa ser tratado antes de se tornar uma estratégia de imobilização no âmbito de articulações internacionais mais amplas. Por exemplo: um Estado é obrigado a cooperar, em relação ao tratado, com um Estado com o qual ele esteja em guerra? É importante que se apresente uma lista mais elaborada, apesar de não exaustiva, do que é cooperação e que padrão deve ser cumprido. Se não houver clareza, corremos o risco que Estados aleguem segurança nacional ou falta de recursos para evitar a cooperação. Se um Estado se recusa a cooperar, o tratado deve oferecer algum tipo de meio para responsabilizá-lo; por exemplo, a possibilidade, para pessoas privadas e organizações, de processar Estados por não cooperarem.
Adicionalmente, o Mecanismo Nacional de Implementação, criado no Protocolo Adicional do tratado, recentemente lançado, tem o potencial de sabotar quaisquer avanços alcançados no tratado em termos de acesso a reparações. E isto pela maneira como foi concebido, com nenhuma referência ao controle social ou participação democrática, assim como tendo a competência de receber reclamações e resolve-las emitindo recomendações e acordos amigáveis. Assim, parece que esse Mecanismo prevalecerá sobre outras vias de remediação, sendo que não oferece garantias de efetiva reparação às vítimas, parecendo, portanto, com outros órgãos que monitoram os compromissos de RSC.
Tal como está, a proteção prometida no projeto de tratado e seu protocolo adicional é fraca. Precisamos estabelecer um sistema centrado na vítima com suficiente clareza e até lá as comunidades atingidas no Sul Global continuarão lutando pelo acesso à justiça.