Jovens trabalhadores de um acampamento pela reforma agrária são acusados de queimar a sede de uma fazenda. Dois trabalhadores rurais são mortos em decorrência da luta por essa fazenda, um após tortura e outro executado na UTI do hospital. Dentro da lei, ambos são crimes, com gravidades e penas bem diferentes. Avaliar qual caso é mais grave pode parece simples, mas para Judiciário paraense está claro que a prioridade é o dano à propriedade privada. Até o momento, os 22 camponeses presos pela depredação da sede da Fazenda Serra Norte, em Eldorado dos Carajás, estão há dez meses presos, podendo ser condenados a qualquer momento a mais de 17 anos de cadeia. As investigações sobre as mortes, por sua vez, ainda não foram concluídas. E não há previsão de quando serão.
No Sul e Sudeste de Pará são diversos os conflitos por terra com mortes, como os casos dos massacres de Pau D’Arco – onde dez camponeses foram mortos por policiais, em 24 de maio deste ano – e o de Eldorado, quando 17 foram mortos em uma ação da PM em 1996. As duas cidades são separadas por 220 quilômetros. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), atualmente são 160 disputas por terra na região, com 14 mil pessoas envolvidas. Um cenário certamente explosivo, mas no qual a bomba só atinge um lado, como explica a coordenadora da Justiça Global, Sandra Carvalho:
“Temos 22 jovens sem antecedentes criminais, com residências fixas, empregos e com um crime contra propriedade privada. Sem qualquer justificativa, eles estão há dez meses em reclusão. Uma decisão que afeta não somente a eles, mas seus pais, mulheres e filhos. Mais de 600 trabalhadores rurais já foram assassinados a mando de fazendeiros na região, mas não há um único atrás das grades em razão disso”, afirma, ressaltando que essa parcialidade tem levado a uma forte criminalização daqueles que lutam por terra e por outros direitos humanos.
Os 22 respondem por um fato que ocorreu no dia 29 de outubro de 2016, quando a sede da Fazenda Serra Norte, do latifundiário Geraldo Rodrigues, foi quebrada e queimada. Aquela é uma área em disputa, onde havia na época um acampamento de trabalhadores rurais – do qual faziam parte – que pleiteava a terra para a reforma agrária.
Um dos pontos principais nas investigações policiais é a chamada individualização do crime. É o que permite diferenciar aquele que comete um crime daquele que apenas estava no local no momento. No caso do Massacre de Eldorado dos Carajás, por exemplo, apenas dois dos 155 policiais que participaram da ação foram condenados, exatamente porque não foi possível individualizar a conduta dos demais. No Massacre de Pau D’Arco, somente 13 dos 29 policiais que estavam na operação tiveram a prisão pedida – e logo revogada – com base no mesmo critério.
Os 22 camponeses presos na Serra Norte não tiveram qualquer tipo de individualização de suas condutas. Eles estão sendo acusados de cinco crimes: esbulho (ato de tomar posse de imóvel expulsando o proprietário), com pena de um a seis meses de prisão; dano, de seis meses a três anos; incêndio, de três anos a seis anos, podendo aumentar em um terço se for uma casa incendiada; formação de quadrilha, de um a três anos; e porte de arma, de um a três anos. Ao todo, eles podem ficar de seis anos e sete meses a até 17 anos e seis meses na cadeia. Não houve interesse da polícia, nem do Ministério Público ou do Judiciário de esclarecer quem pode ter participado ou não da ação.
A situação no local, que já era tensa antes, se torna ainda pior depois das prisões, o que levou os camponeses a fazer uma queixa na polícia, no dia 3 de novembro de 2016: “Os acampados passaram a ouvir vários disparos de arma de fogo, e foram encontrados cartuchos calibre 12 deflagrados próximo ao acampamento; … O declarante acredita que os disparos estão sendo realizados próximo ao acampamento com a intenção de amedrontar os acampados”, lê-se no documento.
A presteza da Justiça paraense não se mostra a mesma para coibir os crimes do latifúndio e atuar na defesa da vida e da integridade física dos que lutam pela terra. Em 4 de maio deste ano, Edvaldo Soares da Costa andava com outros quatro companheiros de acampamento, construindo novos barracos num terreno no fundo da Serra Norte, quando foram surpreendidos por três pistoleiros a serviço da fazenda. Ao ver os homens se aproximando, eles tentaram fugir. Edvaldo e mais dois foram atingidos, mas ele foi o único que não conseguiu correr.
O ataque ocorreu por volta das 17 horas. O corpo de Edvaldo foi encontrado apenas no dia seguinte. Mãos amarradas com dedos arrancados, braços e pernas quebradas, marcas de tiros, facadas e pauladas, pescoço degolado e olhos perfurados.
Até hoje o inquérito que investiga a morte de Edvaldo não foi concluído. Nenhum funcionário da fazenda, muito menos o dono dela, foram acusados formalmente do crime, apesar de ele ter ocorrido dentro da fazenda, na presença de quatro testemunhas.