Por Andressa Caldas*
Por alguma razão que ainda desconheço, foi muito difícil conseguir começar a escrever algumas linhas sobre o julgamento do caso das comunidades quilombolas de Alcântara que inicia amanhã na Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Este foi o primeiro caso em que atuei quando comecei a trabalhar na Justiça Global, em 2001, para elaborar uma petição para o sistema interamericano juntamente com as comunidades, sindicatos rurais e o atuante e perseverante Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara, o MABE.
Talvez seja difícil também porque independente do resultado- que esperamos que seja favorável às comunidades – o caso de Alcântara escancara pelo menos dois pontos nevrálgicos do nosso inacabado projeto de nação democrática: o racismo estrutural e institucional, que está arraigado nas estruturas da Administração Pública e do poder Judiciário; e a absoluta falta de controle civil, democrático e republicano sobre as Forças Armadas.
Sobre a Aeronáutica, neste caso de Alcântara, no Maranhão. Sobre a Marinha, no caso das comunidades quilombolas da Marambaia, no Rio de Janeiro e também, no caso do quilombo do Rio dos Macacos, na Bahia. Nestes 3 casos, as Forças Armadas se apropriaram de terras que não lhe pertenciam, expulsaram os legítimos moradores e promovem continuadas violações de direitos humanos, com violência, perseguição de lideranças e estratégias comuns de “sufocamento comunitário” – impedindo com o uso da força que os moradores construam ou até reformem suas casas.
Centenas de famílias quilombolas de Alcântara foram removidas, despojadas dos seus territórios na década de 80. O governo estadual de Sarney chegou a criar uma lei própria do Maranhão com o único fim perverso de destinar para algumas poucas famílias uma área ainda mais reduzida do que o mínimo legal permitido nacionalmente para uma agrovila.
As comunidades – majoritariamente pesqueiras – foram impedidas pela Aeronáutica de acessar rios e o litoral. Também tiveram negado o direito a visitar os seus mortos nos cemitérios locais. Nunca foram consultados sobre seus direitos quando da construção do Centro de Lançamento de Alcântara, um projeto realizado sem licenciamento ambiental, logo destinado para o governo norte-americano. O caso das comunidades quilombolas de Alcântara é revelador também do pouco apreço do Estado Brasileiro pela tão falada “soberania nacional”
Do mesmo jeito que no século XIX, as elites apostavam que negros e indígenas desapareceriam do mapa do Brasil, a “inteligência militar” desenvolvida na ditadura militar e que persiste até hoje apostou no desaparecimento dos quilombolas do nosso país, sufocando seu desenvolvimento e sua cultura.
As comunidades quilombolas de Alcântara sofreram incontáveis e irreparáveis perdas, mas diferente da aposta que fizeram as elites e dos poderes e forças que a defendem – as comunidades quilombolas de Alcântara seguem resistindo.
Passados 40 anos de resistência (e 20 anos do caso na OEA) o Estado brasileiro – em especial o atual governo – tem a chance de demonstrar que está comprometido com os direitos humanos, com a eliminação do racismo estrutural e institucional e com o controle civil e democrático das Forças Armadas.
40 anos de violações. 20 anos de tramitação do caso no sistema interamericano. É tempo demais. A hora é agora.
* Diretora de Relações Institucionais do Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do MERCOSUL (IPPDH), Vice-Presidenta do Conselho Deliberativo da Justiça Global